Há uma
geração que se foi com Brizola. Uma geração que cresceu em comícios do
interior, banhados com pétalas de rosas entre vozes contrárias dos partidos historicamente
predominantes, onde as gurias vestiam, nas fitas que amarravam suas tranças, as
cores do partido – vermelho, branco e preto, cujo teórico, Alberto Pasqualini,
contava-se, fora colega de seminário de D.Vicente Scherer. Mesmo assim, sua
fama de comunista permitia ao vigário da cidade não absolver, na confissão, as
simples mulheres que, incitadas pelos maridos, afirmavam com humildade terem
votado nele.
Esses mesmos
ecos – de que o comunismo estava às portas da cidade – eram segredados à boca pequena
pelos corredores do colégio das irmãs; mas não impediam que nos mantivéssemos fiéis
ao partido, pois a honra de defendê-lo suplantava o medo do inferno e os
alfinetes cravados no coração da Virgem, coroada na Igreja Matriz, aonde as
mesmas meninas que iam aos comícios, discursavam a favor da Santa, vestidas de
branco e com enormes asas que custavam a carregar. Mas muitos de nós as
carregamos sempre na esperança de que nossos vôos atinjam o infinito. E foi
essa esperança que sempre animou esse intrépido e corajoso líder Leonel de
Moura Brizola.
Com ele foram
as reuniões da Juventude Trabalhista que, fruto dos movimentos estudantis,
encontrava ali um canal pelo qual a esquerda, especialmente a clandestina,
podia atuar. Era o PTB, partido com o qual as forças operárias e de
trabalhadores passaram a se identificar, aglutinando as lideranças sindicais;
partido criado pelo mesmo homem que criara o PSD, Getúlio Vargas, o qual ao
olhar o jovem discursando de improviso, haveria de afirmar, com seu jeito indecifrável
e profético: “Prestem atenção nesse guri, que ele vai muito longe”. E a
profecia se cumpriu: ele foi longe.
Com ele foram
as palestras de sexta-feira na Riachuelo, cujas conversas longas e pausadas,
rivalizando com as de outro líder, Fidel Castro, fizeram com que muitas pessoas,
quase analfabetas, pudessem trazer para seu cotidiano significados geralmente
reservados aos cientistas políticos, como “trust” de remédios, imperialismo
americano, estatização, etc.
Com ele foram
as reuniões nos centros acadêmicos com suas disputas políticas acirradas que mereciam
conquistar votos nos bailes da Reitoria sob o embalo irresistível de “Io che
amo solo te”, de Sergio Endrigo. Foram-se também os encontros e congressos
estudantis na disputa pela União Nacional dos Estudantes com passagens pagas
pela Universidade sob o olhar complacente do Reitor Eliseu Paglioli que por
mais brigas e ataques que fizéssemos, julgando-o conservador, sempre nos
recebia, acolhendo nossas reivindicações com um ar crítico, mas cheio de encanto
ao reconhecer nosso direito de contestar e fazer política.
Com ele
foram-se também a sublevação estudantil na luta pela Legalidade, organizada no
Restaurante Universitário aos gritos de um-dois, um-dois, preparando-nos para a
luta eminente e tentando uma disciplina que custava a se manter e cuja tensão
deixava o coração medroso e a alma inquieta. Foi-se a longa marcha em direção
ao Palácio, todos de braços dados cantando “Já podeis da Pátria, filhos”, sob
uma chuva fria e intensa que não impediu que a jovem, em seu “tailleur”
rosa-claro, protegida pela capa de chuva, erguesse a saia, subisse no caminhão
e discursasse veementemente contra Carlos Lacerda, gritando ao final Legalidade
ou Morte, pois este fora o apelo lançado através dos microfones do Palácio,
pelo, então, governador Brizola: “A morte é melhor do que a vida sem honra, sem
dignidade e sem glória. Aqui ficaremos até o fim”. E essa seiva o alimentou até
a morte: “Sou como as plantas do deserto: basta uma gota de orvalhos e volto a
reverdejar”.
É toda uma
geração que se foi com Brizola. Foram nossos atrevimentos, nossos impulsos
cheios de certezas, nossas utopias, nossos ensaios políticos. Na chuva que caia
sobre o esquife, no dia de seu enterro, nossa alma enchia-se de melancolia.
Calma e pausada, molhada de saudade e espanto, com o coração batendo, como o
bater dos pés dos jovens soldados, carregando Brizola. E junto, nossa
juventude.
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