terça-feira, 19 de novembro de 2019

Não custa sonhar


        Vamos convir que, entre todos os eventos que merecem destaque na capa de jornais, dificilmente deparamos com uma imagem como a de Zero Hora, de 9 e 10 de novembro: as quatro últimas patronas da 65ª Feira do Livro 65ª Feira, na companhia da escultura de Drummond e Quintana.
        A chamada é tão incomum que, em segundos, somos transportados para um mundo completamente diverso daquele que tem nos rodeado. A maioria delas reservam espaço para futebol, times, jogadores numa faina incessante, até pelo espaço em todos os meios de comunicação, de comentários e mais comentários como se fosse possível descarnar uma notícia de tanto mencioná-la. Na verdade, essa tarefa exaustiva destrói o caráter informativo da notícia e acaba boiando nesse caldeirão de sentidos, uma verdadeira Torre de Babel, onde cada um tem o seu dicionário, gerando-se apenas factoides e  fakes News.
         Por outro lado,  há uma homogeneidade no modo de avaliar a realidade cuja natureza responde ao sensacionalismo e ao espetáculo fato já denunciado por Debov, com seu livro A Sociedade do Espetáculo e por Vargas Llosa, em Civilização do Espetáculo, definida por Zigmund Bauman como Sociedade Líquida.
        Quando McLuhan afirmou O Meio é a Mensagem não imaginou os efeitos desse processo, pois o veículo tornou-se a mensagem, perdendo-se o conteúdo. É um verdadeiro diálogo de surdos; ninguém ouve ninguém, mas todos falam, falam como se tudo soubessem e conhecessem. Elimina-se o interlocutor e fica-se com imagens virtuais e efeitos especiais.
        Mas voltando à capa, aliás, pouco comentada, eu a vejo como um prenúncio de que haverá uma mudança. Não é um sinal nem de raio nem de trovão, mas um sinal e os sinais revelam, muitas vezes, os desejos do inconsciente coletivo. Para decifrá-lo, teremos de procurar vestígios de significação que passam por quem fez a foto, a reportagem, o editor, a equipe responsável pela publicação e pela própria Feira que, apesar de ter diminuído, continua ocupando a Praça e atraindo público. Quem sabe o ícone maior dessa mudança seja o fato de consagrar como patrona mais uma mulher, substituindo suas três antecedentes que também ocuparam esse mesmo lugar. Sempre haverá sinais, cabe a nos interpretá-los. Se o Batman põe a Capa pra combater o mal, nós podemos usar a Capa da Cultura para combater a desesperança!                                                                       



Vai longe esse guri...



Há uma geração que se foi com Brizola. Uma geração que cresceu em comícios do interior, banhados com pétalas de rosas entre vozes contrárias dos partidos historicamente predominantes, onde as gurias vestiam, nas fitas que amarravam suas tranças, as cores do partido – vermelho, branco e preto, cujo teórico, Alberto Pasqualini, contava-se, fora colega de seminário de D.Vicente Scherer. Mesmo assim, sua fama de comunista permitia ao vigário da cidade não absolver, na confissão, as simples mulheres que, incitadas pelos maridos, afirmavam com humildade terem votado nele. 
Esses mesmos ecos – de que o comunismo estava às portas da cidade – eram segredados à boca pequena pelos corredores do colégio das irmãs; mas não impediam que nos mantivéssemos fiéis ao partido, pois a honra de defendê-lo suplantava o medo do inferno e os alfinetes cravados no coração da Virgem, coroada na Igreja Matriz, aonde as mesmas meninas que iam aos comícios, discursavam a favor da Santa, vestidas de branco e com enormes asas que custavam a carregar. Mas muitos de nós as carregamos sempre na esperança de que nossos vôos atinjam o infinito. E foi essa esperança que sempre animou esse intrépido e corajoso líder Leonel de Moura Brizola.
Com ele foram as reuniões da Juventude Trabalhista que, fruto dos movimentos estudantis, encontrava ali um canal pelo qual a esquerda, especialmente a clandestina, podia atuar. Era o PTB, partido com o qual as forças operárias e de trabalhadores passaram a se identificar, aglutinando as lideranças sindicais; partido criado pelo mesmo homem que criara o PSD, Getúlio Vargas, o qual ao olhar o jovem discursando de improviso, haveria de afirmar, com seu jeito indecifrável e profético: “Prestem atenção nesse guri, que ele vai muito longe”. E a profecia se cumpriu: ele foi longe.
Com ele foram as palestras de sexta-feira na Riachuelo, cujas conversas longas e pausadas, rivalizando com as de outro líder, Fidel Castro, fizeram com que muitas pessoas, quase analfabetas, pudessem trazer para seu cotidiano significados geralmente reservados aos cientistas políticos, como “trust” de remédios, imperialismo americano, estatização, etc.
Com ele foram as reuniões nos centros acadêmicos com suas disputas políticas acirradas que mereciam conquistar votos nos bailes da Reitoria sob o embalo irresistível de “Io che amo solo te”, de Sergio Endrigo. Foram-se também os encontros e congressos estudantis na disputa pela União Nacional dos Estudantes com passagens pagas pela Universidade sob o olhar complacente do Reitor Eliseu Paglioli que por mais brigas e ataques que fizéssemos, julgando-o conservador, sempre nos recebia, acolhendo nossas reivindicações com um ar crítico, mas cheio de encanto ao reconhecer nosso direito de contestar e fazer política.
Com ele foram-se também a sublevação estudantil na luta pela Legalidade, organizada no Restaurante Universitário aos gritos de um-dois, um-dois, preparando-nos para a luta eminente e tentando uma disciplina que custava a se manter e cuja tensão deixava o coração medroso e a alma inquieta. Foi-se a longa marcha em direção ao Palácio, todos de braços dados cantando “Já podeis da Pátria, filhos”, sob uma chuva fria e intensa que não impediu que a jovem, em seu “tailleur” rosa-claro, protegida pela capa de chuva, erguesse a saia, subisse no caminhão e discursasse veementemente contra Carlos Lacerda, gritando ao final Legalidade ou Morte, pois este fora o apelo lançado através dos microfones do Palácio, pelo, então, governador Brizola: “A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Aqui ficaremos até o fim”. E essa seiva o alimentou até a morte: “Sou como as plantas do deserto: basta uma gota de orvalhos e volto a reverdejar”.
É toda uma geração que se foi com Brizola. Foram nossos atrevimentos, nossos impulsos cheios de certezas, nossas utopias, nossos ensaios políticos. Na chuva que caia sobre o esquife, no dia de seu enterro, nossa alma enchia-se de melancolia. Calma e pausada, molhada de saudade e espanto, com o coração batendo, como o bater dos pés dos jovens soldados, carregando Brizola. E junto, nossa juventude.